"Auto Popular é uma expressão complexa, e frequentemente polissémica, pelo modo recorrente com que, nomeadamente, na tradição etnográfica do período de transição do século XIX e início do século XX surge associada a diversas definições. A sua génese parece ter sido resultado da adaptação da figura do velho Auto Religioso – i.e., daqueles verdadeiros momentos sagrados compostos por cânticos, danças, jogos ou representações que ocorriam em actos, procissões, cultos ou evocações religiosas (dentro e fora dos templos) – e que sendo constantemente sancionados pelas autoridades eclesiásticas, foram como que “projectados” para fora dos espaços e da temporalidade estritamente religiosa – sobretudo litúrgica – adquirindo ou (re) inventando contornos estéticos e culturais que os aproximavam de uma “oralitura” (...) popular – em termos formais, de conteúdos e performativos. É também sob essa designação que o teatro vicentino virá a implantar-se enquanto produto artístico e literário de produção letrada e escolar para consumo cortesão, ainda que com divulgação popular decorrente de modos de representação popularizadas. O Auto Popular surge ainda como uma espécie de composição poética e teatral híbrida decorrente da circulação popular dos velhos romances medievos ou das narrativas e gestas guerreiras. Cuja tradição erudita original se funde em demais versões populares, logo que a geração de origem se desvanece no correr dos tempos. Finalmente, podemos ainda, de um modo geral, encontrar neste género teatral vários elementos reunidos – acção, representação, texto literário, canto, dança, música e mímica -, resultado de cópias, imitações e adaptações de obras eruditas ou ainda de invenções populares quase sempre anónimas."
Raposo, Paulo J. P. 1998. "O Auto da Floripes: cultura popular, etnógrafos, intelectuais e artistas", Etnográfica: revista do Centro de Estudos de Antropologia Social, 2